Quando respondemos a uma dúvida sobre usucapião aqui na coluna da Dinheirista em junho, logo nossa caixa de entrada ficou repleta de perguntas sobre o assunto, de casos que envolviam imóveis invadidos – cujo proprietário estava tentando evitar que os invasores obtivessem a usucapião – a pessoas que queriam se valer do direito.
Por isso preparei esta coluna para responder às principais questões de vocês sobre o tema e, quem sabe, esclarecer outras dúvidas sobre usucapião que podem vir a surgir.
Começando pelo básico: o que é a usucapião e quando ela é válida
A aquisição de um bem por usucapião é devida quando a pessoa que pleiteia esta propriedade tem, durante algum tempo, a posse mansa e pacífica do bem e age como se fosse sua dona, sem qualquer oposição do verdadeiro proprietário. Lembrando que só é possível obter usucapião de bens particulares, nunca de bens públicos.
Ter a posse mansa e pacífica significa possuir o bem sem que haja algum tipo de disputa entre possuidor e proprietários ou sem que estes já tenham manifestado serem contrários à posse ou ocupação do seu bem por este possuidor.
No caso de um imóvel, por exemplo, o dono (ou demais proprietários, caso o possuidor seja dono de parte do bem) não pode ter pedido a desocupação da propriedade ou entrado com ação de reintegração de posse.
A posse também precisa ter sido ininterrupta e durado algum tempo. A Lei inclusive estabelece prazos para cada tipo de usucapião previsto, que podem variar de dois a 15 anos, no caso de imóveis, a depender de fatores como o tipo de imóvel, se há boa-fé do possuidor ou não e da relação entre ele e o(s) proprietário(s).
Já o agir como dono consiste em cuidar do bem como se fosse seu, por exemplo pagando as despesas relacionadas a ele e providenciando eventuais reformas, benfeitorias e manutenções necessárias, deixando-o em perfeitas condições de habitação.
Para se obter usucapião, não necessariamente a tomada de posse do bem precisa ter sido feita de boa-fé. Mas se há algum tipo de acordo ou contrato de empréstimo (comodato) ou aluguel do bem entre o proprietário e aquele que tem sua posse, a usucapião não é devida.
A depender das circunstâncias, pode haver usucapião de um bem herdado – por exemplo, quando há mais de um herdeiro de um imóvel, mas apenas um deles mora, cuida e paga suas despesas – e também de um bem que deveria ter sido alvo de partilha de divórcio nunca efetuada formalmente – por exemplo, quando um dos ex-cônjuges deixa a casa que é bem comum do casal após uma separação, mas o outro continua morando nela.
No entanto, não é possível pedir usucapião de um bem de uma pessoa falecida para tentar evitar o inventário – por exemplo, um filho obter a usucapião da casa de seu pai falecido para não precisar abrir um inventário e fazer a partilha do bem (ainda que seja o único herdeiro).
Isso porque, na usucapião, não ocorre o pagamento do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD), o tributo estadual que incide sobre os bens transmitidos por herança. Então a Justiça tende a não aceitar a usucapião nesses casos. O correto é inventariar e partilhar o bem entre os herdeiros, conforme o caso.
As suas dúvidas sobre usucapião
Vamos agora passar para as dúvidas que recebemos sobre usucapião e invasão de imóveis. Elas foram elaboradas com o auxílio de Renan De Quintal e Stefano Ribeiro Ferri, advogados especializados em direito imobiliário, além de Renato Xavier da Silveira Rosa, sócio do escritório Moreau Advogados.
Se você tiver dúvidas sobre dinheiro, investimentos, imóveis, herança e planejamento financeiro e sucessório, você pode enviar sua pergunta por e-mail para adinheirista@seudinheiro.com ou via mensagem direta privada (DM) no perfil de Instagram da Dinheirista. Aproveita e me segue lá!
Invasão de imóveis e retirada dos invasores
Meu pai faleceu, e a chácara em que ele morava foi invadida. É possível ir à Justiça para retirar os invasores?
Sim, os herdeiros têm total legitimidade para retirar os invasores na Justiça, ainda que o inventário não tenha sido feito.
Meu imóvel foi invadido, mas não consigo retirar os invasores. Ainda não tenho registro dele em cartório, mas consto como compradora no contrato de compra e venda. O que posso fazer?
Você pode entrar com uma ação possessória na Justiça para retirar os invasores, pois mesmo sem a escritura, o contrato de compra e venda já garante ao comprador o direito de posse sobre o imóvel, o que te dá legitimidade para isso.
Usucapião
Como obter usucapião de um terreno que já está ocupado pela minha família há décadas? Só eu já vivo nele há mais de cinco anos sem presença ou acompanhamento de nenhum possível proprietário. O fato de alguém ter efetuado o pagamento de IPTU por algum tempo (o qual deixou de ser pago há mais de três anos) impede a solicitação de usucapião?
Não. Primeiro será necessário ajuizar uma ação para tentar localizar aqueles que constam na matrícula do imóvel como sendo proprietários do imóvel. Caso ninguém seja encontrado, o juiz irá avaliar as condições para verificar se é possível a usucapião. É possível até mesmo somar o tempo da sua posse do imóvel com o tempo em que seus pais aí permaneceram.
Sobre o pagamento do IPTU, o simples fato de o proprietário ter pago o imposto por algum tempo não impede a concessão de usucapião.
Caso o dono queira reaver o bem, ele deve notificar os possuidores para que eles saiam do imóvel. Quando uma notificação ocorre, aí o tempo aquisitivo para o pedido de usucapião cessa, pois considera-se que houve oposição do proprietário à posse dos seus ocupantes.
Moro de aluguel há 15 anos, sem contrato, num imóvel que pertence ao meu irmão. Agora, ele quer que eu me mude, pois deseja vender o bem. Só que minha mãe, de 89 anos, mora na casa vizinha, e eu ajudo a cuidar dela. O imóvel onde moro é grande e já cheguei a sublocá-lo anos atrás para ter meu próprio negócio. Hoje, moro na parte de baixo e há inquilinos (que têm contrato de aluguel) na parte de cima. Tenho direito à usucapião?
Não, pois mesmo sem contrato, você é locatária do imóvel e, sendo um aluguel, a situação não cumpre o requisito de usar o imóvel como se fosse seu. O contrato verbal é válido, e houve uma permissão, por parte do seu irmão, para que você se tornasse locatária.
A legislação brasileira, aliás, não permite a usucapião de imóvel alugado. A posse de um imóvel alugado, cedido ou emprestado configura mera tolerância para o uso e não permite, por si só, a usucapião.
Minha esposa emprestou um imóvel próprio para o irmão, que nele morou por 20 anos, até falecer. Agora, a viúva dele entrou com processo de usucapião, reivindicando a posse. A ação ainda está em andamento, mas será que vamos conseguir reavê-lo? Todos os impostos do imóvel, bem como contas de água e esgoto, foram pagos por nós. A única despesa da viúva do irmão da minha esposa era a conta de energia. Existe a possibilidade de o juiz conceder este imóvel a ela?
Se sua esposa realmente emprestou o imóvel ao irmão, de forma gratuita (isto é, sem cobrar aluguel), trata-se de um comodato, algo que, assim como o aluguel, não caracteriza uma posse válida para se requerer usucapião.
O comodatário é obrigado a conservar o imóvel como se fosse seu, e não pode usá-lo senão de acordo com o contrato (se houver) ou a natureza do imóvel.
Mesmo que não haja um contrato de comodato – algo que ela poderia ter feito, por precaução –, valem o contrato verbal e o fato de que, como proprietária, ela deu permissão para que o irmão e a esposa vivessem no imóvel.
Não é como se sua esposa tivesse doado o imóvel ao irmão, e agora a viúva pudesse herdar o bem do marido falecido.
Se você e sua esposa ainda pagavam as contas do imóvel, as chances de a moradora não conseguir usucapir são consideráveis, acredita o especialista em direito imobiliário, Renan De Quintal. “Ela teria que comprovar que não houve empréstimo e que tem a posse do bem com o chamado ‘animus domini’, ou seja, que tem o bem como se fosse seu”, diz.
Como proprietária, sua esposa pode inclusive manifestar formalmente oposição à ocupação dessa moradora e pedir que ela deixe o imóvel, por exemplo.
Usucapião de bem herdado
Moro sozinho há 15 anos numa casa que herdei dos meus pais, ambos falecidos, junto com meus irmãos. Acontece que somente eu e outro irmão cuidamos da casa e pagamos as despesas do imóvel, inclusive com reforma para ampliá-lo. Agora, esse irmão está casado e tem a casa dele. Gostaria de saber se eu conseguiria obter na Justiça a usucapião para ficar como único proprietário do bem.
Caso o inventário ainda não tenha sido feito, não. A usucapião como medida para evitar o inventário não é possível, a menos que ele seja de difícil execução. Isso porque, na usucapião, não ocorre a cobrança do ITCMD, o imposto que incide sobre doações e heranças, o que ocorre no inventário para se transmitir os bens aos herdeiros.
Agora, caso o inventário e a partilha já tenham sido realizados, um pedido de usucapião contra os demais herdeiros (seus irmãos) é possível sim. “Isso é inclusive bastante comum e vale de alerta para que os herdeiros não permitam que apenas um deles viva em um imóvel herdado por todos sem qualquer tipo de providência”, diz Renan De Quintal.
Quando meu pai faleceu, deixou uma casa. Eu, minha mãe e meus cinco irmãos fomos ao cartório e assinamos um documento que atestava que minha mãe seria a proprietária e, na falta dela, os seis filhos herdariam a casa.
Depois de algum tempo, minha mãe faleceu e quatro dos meus irmãos saíram da cidade, a trabalho, ficando por aqui apenas eu e meu irmão mais velho. Porém, ele tomou conta da casa e parece que conseguiu passá-la para o nome dele alegando usucapião.
Como ele conseguiu se apropriar de uma casa que era herança dos seis irmãos se temos o documento dela? Ele nunca morou nesse imóvel, que sempre esteve alugado. Alega que tem direito à usucapião porque arca sozinho com o IPTU, mas também nunca repassou aos irmãos nossa parte no aluguel, ao qual, em tese, teríamos direito. Consequentemente, estávamos sim colaborando, indiretamente, para pagar o IPTU da casa. É isso mesmo? Ele está certo?
Caso este imóvel não tenha sido inventariado e partilhado formalmente entre os filhos após a morte da sua mãe, usucapião para tentar evitar o inventário não é algo que costuma ser aceito pela Justiça.
Mas vamos partir do princípio de que esse bem foi inventariado e partilhado entre você e seus irmãos, conforme manda a Lei. Neste caso, a usucapião do bem herdado face aos outros proprietários até é possível, mas teríamos que saber se realmente houve um processo nesse sentido, pois você e os demais proprietários deveriam ter sido intimados a se defenderem.
Além disso, seu irmão precisa ter preenchido todos aqueles pré-requisitos (posse do bem de maneira exclusiva, contínua, duradoura, pacífica e sem oposição dos demais proprietários) por um bom tempo.
Ele também precisa ter comprovado, na Justiça, que tinha intenção clara de ser dono do imóvel, assumindo-o como se fosse dele, sem qualquer reconhecimento de que haveria outros proprietários, ainda que não morasse na casa, apenas a alugasse a terceiros. Lembrando que apenas assumir sozinho o pagamento do IPTU não é suficiente para comprovar isso.
Então, ele pode até ter realmente obtido a usucapião na Justiça, mas seria preciso verificar se realmente houve um processo e o imóvel passou formalmente para o nome dele.
Quanto aos aluguéis, sim, ele deveria ter dividido esses rendimentos com você e seus irmãos, co-proprietários deste bem. O fato de ele ter alugado a casa como se fosse o único dono e ficado com todo o valor do aluguel para ele poderia até mesmo ser considerado enriquecimento ilícito, explica Stefano Ribeiro Ferri, especialista em direito imobiliário e membro da comissão de Direito Civil da OAB-Campinas.
Segundo o advogado, você e seus demais irmãos poderiam inclusive acionar a Justiça para receber os valores devidos, pois os aluguéis recebidos por esse irmão antes de ele obter a usucapião ainda devem ser divididos com todos os proprietários do imóvel à época.
Moro desde 1967 no imóvel que pertenceu aos meus pais, sou solteira e não tenho filhos. Em 1992, meus pais doaram ⅓ do bem para mim e os outros ⅔ para três netos (meus sobrinhos), mantendo direito de usufruto. Esses netos, porém, nunca arcaram com qualquer obrigação em relação ao imóvel.
Em 2016, minha mãe excluiu meu pai do usufruto, pois ele havia falecido em 2004. Como duas das minhas sobrinhas já moravam fora do Brasil, minha mãe obteve procurações públicas com plenos poderes de todos, para resolver o que fosse necessário em relação ao bem.
Na ocasião e com as procurações em mãos, ela conseguiu doar para mim a participação dos meus sobrinhos no imóvel, para que eu ficasse como única proprietária, pois ela temia ficar desamparada caso eu viesse a falecer antes dela, uma vez que já não tinha nenhum bem em seu nome. Como ela era minha única herdeira, se eu morresse antes dela, ela ficaria com o imóvel. No arranjo em que estava antes, ficaria apenas com o meu terço, e meus sobrinhos, netos dela, não a ajudavam.
Assim, eu e ela moramos de forma pacífica no imóvel até 2022, quando então meus sobrinhos passaram a me acusar de tê-los feito assinar as procurações sem que eles soubessem dos poderes que estavam dando à minha mãe. Também me acusam de tê-la enganado, induzindo-a a me doar a totalidade do imóvel sem saber das implicações.
Eles então entraram com uma ação na Justiça e conseguiram anular a doação da parte deles no imóvel para mim, alegando hipossuficiência financeira e também por não possuírem outro imóvel. Minha mãe faleceu no decorrer do processo. Eu teria como alegar usucapião, neste caso?
Esse caso exigiria a análise mais cuidadosa de um profissional, mas é possível fazer algumas ponderações.
Segundo o advogado Stefano Ribeiro Ferri, você preencheria algumas das condições para pedir usucapião, dado o tempo em que residiu no imóvel sem interrupção ou oposição (mais de 15 anos).
Mesmo considerando apenas o período anterior à doação da parte dos seus sobrinhos para você – ou seja, o período em que você era proprietária em condomínio com eles –, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já definiu que o condômino que exerce posse sem oposição dos demais proprietários pode pedir usucapião em nome próprio, desde que preencha os demais requisitos.
Só que existe um porém: o fato de que, desde 2022, os seus sobrinhos vêm contestando a sua posse, a ponto de terem inclusive conseguido anular a doação que sua mãe fez para você em nome deles.
Segundo Ferri, seus sobrinhos poderiam contestar a sua eventual alegação de usucapião, afirmando que a doação foi anulada judicialmente e que, portanto, ainda têm direitos sobre o imóvel.
“Além disso, podem argumentar que nunca houve um abandono do bem por parte deles, e que a mera posse indireta, através de procurações, não configura os requisitos legais para a usucapião”, complementa.
Para Renan De Quintal, a alegação da usucapião no seu caso não seria possível, pois o embate iniciado em 2022 e que resultou na anulação da doação faria com que o tempo de posse para você alegar usucapião começasse a contar de novo do zero naquela data.
Além disso, ele entende que, no seu caso, essa posse, ao menos nesses anos mais recentes, não poderia ser caracterizada como pacífica, já que seus sobrinhos passaram a contestá-la.
Confira a pergunta sobre usucapião que respondemos em vídeo em junho a seguir:
A Dinheirista, pronta para resolver suas aflições financeiras (ou te deixar mais desesperado). Envie a sua dúvida para adinheirista@seudinheiro.com.
Fonte: SeuDinheiro